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          Ah, o cheiro de mofo e revolta! Era o ar que eu não queria respirar no início de 1904. Um bando de porcos nojentos chamados de “agentes sanitários” estava adentrando nossas casas. Sabe-se lá o que faziam com nossas mulheres e filhos, pois não estávamos presentes para saber. As queixas das donas eram diversas, desde agressão até a violação das próprias. Uma baixaria. O governo tomava um rumo que, por Deus, assemelhava-se à Alemanha nazista.
          Eu era Tarcísio. Sim, era. Sofri mudanças irreversíveis, quais nem toda a perseverança do mundo pôde reverter. Nosso lar ficava lá na subida da Ladeira do João Homem, no Morro da Conceição. Minha mulher, minha filha e eu éramos felizes, mesmo tendo que aguentar a gentalha da vizinhança que berrava o dia inteiro. Era criança chorando, mulheres gritando por um pedacinho a mais no varal e a correria do futebol. Uma baderna que nem a pessoa mais paciente do mundo aguentaria.  E nós, os “nobres” daquela gente marginal é que éramos os nojentos. Mas que sejam amaldiçoadas as bocas que praguejaram contra minha família e que, mais tarde, tiveram sua vitória. Tarcísio trabalhava numa fábrica pequenininha de tecidos caros, no centro do Rio de Janeiro, em frente a ninhos onde homens engravatados escondiam suas caras. Nunca deixou nada faltar à filha e nem à mulher, seja nas questões financeiras ou sentimentais. Pelo menos com a filha, pois falar de sentimentos com a mulher já havia se tornado um desafio. A velha e boa rotina chegara em apenas sete anos de casamento. Não havia mais intimidades e, mesmo que não se tratassem a pontapés, a comunicação era fria. O que os mantinha juntos era a filha.
          - Vou indo. - dizia ele, todos os dias quando ia trabalhar. Beijava a filha no rosto e trancava o portão, amedrontado com a ideia de que aqueles execrados homens agressivos pudessem fazer mal a qualquer uma das duas. E ia.
          Um dia, a bagunça da Ladeira e os portões não foram suficientes. Os ratos invadiram a casa de Tarcísio e obrigaram-nas, mulher e filha, a receber a maldita vacina. Enquanto isso, Tarcísio se escondia nos fundos da fábrica de tecidos, pois um grupo de manifestantes revoltados atacava os prédios públicos a pedradas. Era o caos. Mal sabia ele que aquela havia sido a última manhã que vira sua família, enquanto dizia “Vou indo” em sua cabeça. E, desta vez, era para sempre.
          Ultimamente as condições estavam duras e para nada sobrava um bocado de réis. O chefe também não lhe pagara aquele dia, alegando a movimentação intensa que poderia terminar num assalto e Tarcísio sem o montante do mês inteiro. Achou justo. Tudo bem, pois ainda havia comida para o jantar. O importante era voltar o mais rápido possível para casa e proteger suas meninas.
          Subindo a Ladeira, notou a quietude. Primeiro pensou que uma das crianças devia ter se esborrachado no chão de cima da laje e, como eram muito unidos, correram todos para o hospital. Pensou assim até ver o vento soprar e o portão de ferro bater no canto, mostrando que estava aberto e sem cadeado. Em dois passos já estava dentro da sala, vendo suas meninas. Desta vez, não esperavam no sofá, como de costume. Estavam surradas, manchadas com a palidez da morte e seus olhos… tão assustados. Fora a pior visão da vida de Tarcísio. Não tinha dinheiro, nem família e tampouco coragem de aparecer novamente na Ladeira do João Homem. Tarcísio fugiu. E a culpa por tê-las abandonado àquela manhã o fez companhia.
          Sem rumo, recorreu à única pessoa que sabia que não ia abandoná-lo: Michele. A moça… ou moço, era seu caso há anos. Estava no submundo do porto do Rio de Janeiro. Um cortiço fétido, desabando e abarrotado de vadias horrorosas. Sim, senhores. Um travesti. Michele era o amor da vida de Tarcísio, mas nunca tivera mais que uma noite de sua vida ao lado dela. E lamentava por isto noite e dia até o momento que teve de recorrer a seus braços e, não somente a eles, à dona do bordel.
          - Tenha dó, senhora. Preciso de abrigo, pois os agentes sanitários assassinaram minha família e estou sem paradeiro. – disse ele à Madame Cássia, o travesti que possuía o corpo e cabelos mais belos dali. Aos olhos de Tarcísio, não chegava aos pés das curvas sinuosas do corpo de Michele e da vermelhidão de seus cabelos cacheados. Esperava que ela zombasse de sua desgraça e o jogasse para fora, mas Madame entendia o que era perder a família. Deixou-o ficar, com a condição de que não se aproveitaria de Michele sem pagar. No momento, esta era sua menor preocupação. Portanto, aceitou de bom grado e fez a exigência de sigilo sobre sua estadia ali.
          O medo da vacina mortífera ainda assolava seus pensamentos. Não queria ser o próximo a sofrer com aquela maldição. O cortiço agora seria seu esconderijo, quase um porto seguro… e poder ver Michele todos os dias, o agradava. Às noites, os pesadelos o perturbavam com o sangue de sua pequenina espalhado pelo chão da sala, banhando o azulejo num vermelho tão puro e aceso quanto ao dos cabelos de Michele. Esta ligação era insuportável para ele. Por muitas noites, agonizou. A barba crescera na cara, não apareceu nunca mais à fábrica pequenininha de tecidos caros, suas roupas eram trapos e Michele nunca comparecera em seu quarto, lá no buraco mais escondido daquela toca de sexo. Foram oito meses recebendo comida e água por uma das criadas feiosas da Madame. Michele só lançava o olhar lá para dentro, mas não se preocupava em dar-lhe uma palavra. Perguntou-se se havia feito algo de errado. À tarde do oitavo mês, decidiu sair do quarto e ir até o ‘hall’ do hotel de aberrações. Lá estava ela, dançando num mastro e arrancando vinte pratas da mão de um marinheiro sujo. Michele e seus cabelos cor de sangue cintilavam em meio à feiura daquelas prostitutas. Madame Cássia o viu primeiro que ela, já que suas vestes ridículas as chamaram a atenção.
          - O que está fazendo aqui? Não queria se esconder do mundo? – questionou a Madame, já puxando-o pelo braço. Tarcísio pensou que ela iria trancá-lo em seu esconderijo, mas ela só o estava jogando em seu camarim.
          - Não aguento mais, senhora. Não nasci para viver em cativeiro. Meus olhos já desacostumaram à luz do sol.
          - Se sair daqui, penará nas mãos do Estado. Que tipo de imbecil toca o corpo de cadáveres? Deve estar sendo caçado pela polícia, mesmo que a gente da tua vizinhança desminta o fato. O governo jamais se julgaria para poupar tua vida.
          - Que eu morra então, senhora. Nem minha Michele me quer mais. Estou aqui há oito meses e ela jamais parou para conversar comigo. Me deixou lá, abandonado e entregue às moscas.
          - Ela não pode se apaixonar por você, Tarcísio. Se for o que procurava aqui, que vá embora. Um bordel não é lugar que se procure amor, e sim interesses. Favores com um preço justo.
          Ela deu-lhe um banho, retirou todo o mau cheiro de seu corpo com óleos de rosa branca e o vestiu com as roupas largas do marido morto. Tarcísio permaneceu em silêncio e tristonho durante todos os cuidados de Madame. Incomodada, ela desistiu.
          - Vou chamar a Michele. Ela, com certeza, cuidará melhor de você do que eu. E faça o que quiser a ela. Viole-a até seus órgãos incharem, se for preciso.
          Tarcísio ficou feliz com a notícia. Teria sua Michele por perto, mas não entendeu a reação de Madame Cássia quanto ao seu silêncio. Madame, por sua vez, quis chorar. Amava aquele homem desde que o vira entrar em seu camarim pela primeira vez. Queria que fosse seu, mas ele só tinha olhos para Michele. Em seu momento de raiva, quis degolá-lo com a faca mais próxima, mas o amava demais para fazê-lo mal. Na porta do camarim, uma mãozinha delicada surgiu empurrando um vestido de noite que prendia a porta para o lado. Ela era mais mulher que sua antiga esposa.
          - Michele? – seus olhos brilharam de felicidade.
          - Madame me mandou vir. Fiquei preocupada de que tivesse sucumbido às sombras do teu quarto. Como conseguiu ficar todo esse tempo lá?
          - O que me manteve aqui foi te ver passar todos os dias por aquela porta. Por vezes até me esqueci de minha mulher e minha filha ao olhar os teus cabelos lindos. – mas esta segunda frase era uma mentira descarada. Logo ele, um homem de tanto caráter, não iria esquecer que vira sua família ruir por conta de uma medida inescrupulosa do governo.
          - Queria poder te ajudar, mas… - Madame Cássia surgiu à porta.
          - Tudo bem, Michele. Até o fim da manhã seguinte, cuidará de Tarcísio. Por minha conta. – dizer aquilo lhe doeu o coração, mas se queria tirá-lo da cabeça, devia fazê-lo.
          - Desculpe-me, Madame, mas não vou para aquele buraco de tatu que você o jogou para me sujar com todo o tipo de doença que possa ter ali.
          - Podem ficar na minha suíte. Lá, pelo menos, está tudo em seus devidos lugares e devidamente higienizado.
          Pularemos esta parte, mas Tarcísio e Michele tiveram a noite mais apaixonada de suas vidas. Dois amantes escondidos do mundo e mortos de medo. Ninguém escutaria seus gemidos, pois o bordel era tão escondido que a noite densa travaria os sons em seu interior. Foi tão bom que Tarcísio esquecera que estava com um homem vestido de mulher na cama. O medo de ser encontrado pelos agentes sanitários sumia.
          Na manhã seguinte, Madame esquecera que havia cedido seu quarto para o casal de pombinhos e, sem querer, abrira a porta de seu quarto. Sua raiva ardeu ao ver os dois abraçados, dormindo como anjos em sua cama e os cabelos ruivos de sua cria banhando o peitoral do homem que ela amava. Como ele, não tinha mais família por quem viver. Ele, porém, tinha Michele. E se Madame não o tinha, nenhuma de suas cortesãs o teria. Isto já era de se esperar de Madame Cássia, já que era a mulher mais vingativa que todos os bordéis locais haviam visto. Certa vez, mandara matar a dona de outro bordel porque levara uma de suas meninas e conseguira muito mais lucro com ela do que a própria Madame. Porém, o que viria era de um impasse enorme até dentro do coração dela. Atitudes e ações que jamais poderiam ser mudadas se ela dissesse “sim” para seu ódio. E “sim” foi o que ela disse. Buscou o telefone no fundo de sua bolsa e ligou para os agentes sanitários e para a polícia.
          Tarcísio abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi a beleza de sua Michele, que estava com as pernas entrelaçadas às suas. A segunda coisa que viu foi terrível. Madame Cássia estava com uma lingerie vermelha. A mais bonita que tinha, provavelmente. O terrível é que ela tinha uma faca na mão. Michele acordou com um grito de Tarcísio e ambos se encolheram, escondendo suas intimidades com um lençol, em direção à cabeceira da cama.
          - Que eles enfiem aquela agulha nos seus olhos e nos dela. Eu amo você, Tarcísio. – E Madame estava degolada, jorrando sangue no chão e remindo-se de todos os pensamentos que teve sobre degolar o amado.
Exatamente dois segundos depois, os agentes e a polícia derrubaram a porta do quarto. Michele chorava muito e pedia para que Tarcísio não a deixasse. Quiseram aplicar-lhe a injeção, mas ela se debatia e lutava o tempo inteiro. Aqueles nojentos batiam nela para que sossegasse, mas foi em vão. A polícia arrastou Tarcísio porta a fora, vendo ficar para trás sua Michele, sua esposa e sua filha. E ele viu a morte de todas elas naquele momento. Sua cabeça bateu nos degraus da escada, mas viu que todo o bordel estava em ruínas. E apagou.
          Como Madame dissera, o governo jamais colocaria culpa em si próprio para poupar minha vida. Talvez não a vida, mas não pouparam minha liberdade. Sem culpa alguma, inocente de todos os crimes que sou acusado de ter cometido. Todos sabem o que aconteceu, mas ninguém sabe de nada. O medo continua a correr lá fora. Carrego a culpa de quatro mortes; a de minha esposa, minha filha, da quase mulher que eu amava e de outra quase mulher que me amava. Queria jamais ter amado alguém. Dói demais estar sozinho no mundo, nesta cela fria e não ser mais o homem que eu era. Agora sou 0068. Um número entre uma massa de assassinos e ladrões.



Caroline de Lima Rieger

0068: A injeção do amor

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