top of page

A ópera do malandro

        

- Zé, acorda que tá na hora!


Era Dalva, a mulher de José Eduardo Cunha de Moura, 34 anos, desde os 13 trabalhando como estivador em Santos, mas desta vez, fora mandado ao Rio.
José, desde pequeno passou a vida abrigando em sua mente uma lembrança: as bebedeiras de seu pai.
Cresceu nas embarcações de Santos, onde via este mesmo cabuloso parente fazendo carregamentos pesados e sempre lhe dizendo que:


- Você precisa crescer e me ajudar pra virar homem moleque. Não adianta ficar nessa porra de cadeira olhando o movimento da tartaruga, a vida é agora;


E a partir dos conselhos do "chefe dos estivadores", José cresceu.
Largou a escola logo que começou a trabalhar, mas não tinha nenhuma dificuldade de leitura, e adquiriu com o passar dos anos, o intelecto de um professor. Mais complexo que o de um filósofo, e mais agitado que o de um macaco. Morava com seu pai e o perdeu aos 18 anos de idade, percebendo uma necessidade maior ainda no fato de ter de se tornar um homem... Hoje, vive com Dalva, e não tem como pretensão ter filho em sua vida, pois acha que sempre foi um "escarro de seu pai no mundo". Passa a vida de um clássico carioca, o da gema.
Naquela manhã, Zé, como de costume, tomava seu café azedo e pão dormido com manteiga assistindo ao Bom Dia Rio, que mais uma vez noticiava um acidente de carro, na altura do Centro da Cidade. Com o olho cheio de remela ele escutava atentamente a TV chiadeira:


- Pra você que vai a altura da Cinelândia, o trânsito está muito lento devido a uma batida de carro. André Luiz Moura colidiu o seu carro com Marina Rocha Vieira, que não sobreviveu à colisão. André Luiz, que dirigia embriagado, está em coma no Hospital Souza Aguiar, em estado grave. Mais notícias do trânsito, aqui no Bom Dia Rio.


Ao ouvir isto, Zé deu aquela arrotada básica. Ver morte por acidente era tão normal quanto ser assaltado na Zona Portuária, assistir aquele trânsito que obtinha um congestionamento diário, era rotina. Inalar o cheiro do CO2 dos grandes e pequenos veículos todos os dias, era prazer. Freios e acelerações dos mesmos eram como ouvir música, assim como ouvia mais uma vez... Daquela vez.


Saía de casa para mais um dia de batalha, enquanto Dalva ia para a casa. (Ou o casarão. Ou a mansão, como queira chamar.) da família Amaro para limpar sua casa, e acrescentar mais umas centenas para as despesas da casa.
Diferente da despesa de 2,75R$ que sua mulher gastara todos os dias, Zé pegava sua bicicleta velha e ia até o Porto para exercitar seus braços magros, resistentes e machucados, pois morava ao redor do Centro, próximo a Avenida Presidente Vargas, e estacionava seu motor próximo ao mar. Naquele dia, a demanda era de alimentos, que vinham da Alemanha, Índia, Portugal, México e outros respectivos países, e Zé encontrava-se com seus ‘”parceiros de braço”.

 

- Tu tá com cara de que comeu alguém ontem... Diz pra mim Toninho, é verdade?
- Que isso meu rapaz! Não só ontem como antes de ontem, e antes de antes de ontem!


Antônio Silva Barbosa era um dos grandes parceiros de José. Se José precisasse de abrigo, lá estava Toninho. Se José precisasse matar um tempo na estiva, lá estava Toninho para carregar umas demandas a mais. Se José precisasse de uma grana, lá estava Toninho para lhe dar nem que seja uma pequena parcela de seu salário, sem cobrar a devolução. Ali estava o cara mais humilde que a estiva poderia conhecer, Doutor Antônio.


- Hoje o dia tá fácil pra gente, Zé. Só peça da agricultura, só cereal...
- Beleza, tava assistindo o jornal da manhã. Mais uma morte, as avenidas estão tudo engarrafadas, ainda bem que não tenho carro...


Como grande parte dos moradores da Zona, José não se rebelava contra a vida minimalista, cotidiana, e pouco feliz que levava naquele local. Tinha sempre os amigos da estiva na mesa de um bar e casa. Era essa sua rotina. Trabalho, bar e casa. Mas, naquele dia, seria diferente.

 

- Alô?
- Senhor José que está falando?
- Sim, quem que tá do outro lado?
- Aqui é o Doutor Luiz Amaro, queria dar uma notícia, o senhor precisa ter coração forte...


O enterro de Dalva foi dois dias depois. Seu corpo estava totalmente estraçalhado pelo impacto que fizera ao colidir com o chão. Como dizia Chico Buarque:
"Tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego..."
Foi mais ou menos o que aconteceu com Dalva quando limpava a janela no sexto andar da sala dos Amaros (donos da Mansão da Barra, uma das famílias mais ricas da Grande Rio), só que ao contrário disto, agonizou no estacionamento da família, e não resistiu nem três minutos após sua colisão.
José, por sua vez, parecia um homem perplexo e calmo com o que havia acontecido.
Acordou no berço de Toninho, que lhe dera todo o apoio naquela semana junto a sua esposa, e se mudariam para o Espírito Santo na outra semana.


Na estiva, Zé chorava mais que trabalhava, bebia mais que falava, soluçava mais que piscava. Estava se tornando outra pessoa, a qual fazia a vida ter todo o sentido em um copo de bebida. José agora, ao invés de acordar com seu café e pão com mortadela, dava bom dia a um copo de Caracu e Ypioca, e devido a isso José trocou o dia pela noite. Sem mais conversas, foi mandado embora da estiva, destruindo um legado de mais ou menos 20 anos, e que seu pai honrava mais que qualquer coisa nesta vida. Zé, por sua vez, viveria da “herança” de 500R$ do avô, antigo militar brasileiro.
José Eduardo Cunha de Moura, 34 anos acordou naquela noite mal adormecida e calorosa. Tomou seu banho de 5 minutos, trajou-se com sua roupa branca e saiu de casa.
Deparava-se com aquela constante cena... Muitas luzes, a lua solitária, os mendigos sorridentes, os pivetes que jogavam bola ao redor, os bares da redondeza que recebiam os fiadores, e as garotas de programa. Zé, havia trocado o cansaço de seus braços, pelo cansaço de sua boca e garganta, que queimava a noite toda, toda noite, toda hora. E cada vez que escurecia, queimava mais ainda.


Era conhecido por ter “sido alguém na vida”, e por ser “exemplo” do porto, com uma juventude de responsabilidade. Hoje, um cara sem igual. Saia com seu chapéu de palha seja de dia ou de noite, passeava pela Gamboa com seus passos curtos e rebolados, como os dos pombos que rodeavam aquele local. Virou também, um compositor barato, por um tempo, um dos mais conhecidos da Gamboa pelo velho “Sambinha da Estiva”: “Carregando a caixa nas costas/ Trabalhando de cara pro mar/ Descontando no copo gelado/ Para nós só resta navegar.” Consequentemente, este virou o hino dos estivadores do local. Os estivadores cansados. E assim, estava todas as Sextas Feiras do bar do Seu Mané cantando seu Sambinha para os estivadores bêbados que estavam por lá às 20 horas da noite. Mané era o amigo de todos. O conformado com o Porto e o Centro. O dono, e sócio. Cuidava de seu bar como se fosse a Ultima Esmeralda do Deserto. Seu bar, sim, seu bar, um local amarelado, com cheiro de cachaça, abrigo de mendigos, trabalhadores e estivadores, casulo de baratas, e um acervo de urinas. O bar de diamante.
Mané era também devoto do espiritismo. Junto com sua mulher, construíram um centro espírita, que Zé passou a frequentar pelo menos duas vezes a semana. Mané perdera seu pai seis meses antes, e comoveu-se com a história de José. Este, só queria reencontrar o seu pai mais uma vez e bater um ultimo papo com o maior estivador de Santos.

 

- Zé, acorda que tá na hora!
 

Era Dalva, mulher de José Eduardo Cunha de Moura, 34 anos o despertando em seu sonho e dando socos no criado-mudo ao lado de sua cama. Hoje, Zé acordou mais uma vez com sua enxaqueca constante, o que o levava mais uma vez ao bar. Era Domingo, 8 da manhã, e José devia mais uma vez a Mané e para um montante de pessoas, inclusive Mário Lúcio, que agora bate na porta com uma pistola na mão. Eram 3 meses, 2.000R$, e uma conta apagar. José abrira a porta e levara um soco na cara de ML. Este só precisou mandar um recado através do suor em seu rosto devido ao melancólico calor que fazia naquele dia, na Gamboa: - Vou te avisar uma vez só, teu merdinha. Duas semanas, no máximo pra me dar o retorno, e tu morre...
Zé, que aparentemente não ligava mais se a morte viria ou não, por minutos mudou seu conceito quando reparou que a pistola de ML estava carregada e apontada para seu pequeno olho esquerdo por quase dez minutos de ultimato. José urinou em suas calças, e ML evacuou o local, que parecia o banheiro de Mané às 9 horas da noite.
José, não tinha mais escolhas a não ser fugir. Mas, era malandro. “O mal do malandro é achar que todo mundo é otário...”, e com Zé não foi diferente...


11 horas, Domingo, Gamboa. Noite peculiar, luzes laranjas artificiais das lâmpadas do Elevado, armazéns imundos (casa de mendigos, usuários de crack e crianças de rua), edifícios abandonados que já foram lugares importantes, o cheiro constante de urina e esgoto... Para Zé não havia deserto ou perigo, e naquele momento tomaria um novo rumo... Avistou Camila Inocêncio Silveira, 30 anos, com sua bolsa e fazendo sinal aos carros.
Era uma modelo de topless fazendo semáforo, balançando sua bandeira enquanto andava e sendo ignorada. Caminhando, seus passos pareciam uma serenata serena. Era a cara de Dalva. Mas, uma Dalva mais jovem e magra.

 

- Desgraçada! Vai apodrecer nessa bosta de rua comendo merda!


Um rapaz branco, magro e alto agredia Dalva aos olhos de José. Era Camila! Camila estava sendo agredida pelo cafajeste! O que José faria agora? Nada. José assistiu o rapaz que dirigia um Porsche chamá-la de “prostituta de merda” e ir embora com uma arrancada, digamos que, desnecessária. E lá foi Zé, com seu passo rebolado levantar Dalva, digo, Camila, que havia tomado um empurrão do sujeito de Porsche:


- Você tá bem, nêga?
- Olha a minha cara de quem está bem
- Dá a mão...
- Não vou dar nada pra você. Sai.
- Vamos, pode acreditar...


- Camila não hesitou. Naquela noite não queria ficar em casa, pois, não havia pagado a conta de luz. Escuro no Centro é como escuro em Nova Iorque. Sitiada.
E andaram na noite clara da Zona Portuária, beberam às claras do líquido amarelado, andaram ao redor com os sapatos brancos pardos, sentaram-se no sofá imundo de poeira, deitaram-se na cama desarrumada da manhã.
A manhã. Mais uma manhã das 30 manhãs que José passou com Camila, Dalva o acordava de seu sonho mais uma vez. A água mal encanada do banheiro de José caia sobre a cabeça suada, os cabelos negros, e a pele morena encardida. Sua casa refletia o mundo lá fora, desarrumado, em sépia... Um tom de sujo misturado com devaneio e confusão. Hoje, José estava arrumado. Encontrar-se-ia com Mané, que lhe ofereceu um emprego em seu bar a fim de estabilizar consideravelmente a vida de seu amigo. Isso se conseguisse chegar até o Bar da Meia Noite sem que uma bala perfurasse suas costas exatamente às 11h11min da manhã de Sexta Feira. Foi como Santo Cristo. Tomou um tiro nas costas, e o bandido começou a sorrir; era Mário Lúcio, cada vez pior e com seu rosto ressecado e com uma pedra na mão. Este mesmo saiu andando calmamente, enquanto José Eduardo Cunha agonizava ao chão imundo da Gamboa. Os que passavam nada fizeram. Os que ficaram pra assistir tiraram fotos. Não eram muitos. Dalva ao chegar com suas malas para a casa de Zé, se deparou com sua casa pior do que já estava, mais amarelada do que parecia, com os móveis mijados, roupas queimadas e fogão ligado. Nunca mais ouviu falar de José, e não perguntaria dele para Mané, que a odiava mais que seus fregueses que brigavam toda Quarta quando passava o jogo do Flamengo. Este, que após saber da notícia jurou rebelar-se contra Mário, mas logo desistiu. Colocava a música preferida de José em seu bar, agora...


Toninho, que já estava no Espírito Santo, sorriu quando Mané lhe deu a notícia. Dalva voltava para casa sem entender absolutamente nada... Mas, Zé não ligava, estava com dor de cabeça. Precisava dormir mais uma vez para Dalva lhe acordar outra vez. Azar! A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar...



Charles Faria

  • Wix Facebook page
  • Wix Twitter page

Entre em contato com o grupo Pitanga por aqui. Tire suas dúvidas, opine, faça críticas e dê sugestões. Será um prazer saber o que você tem a nos dizer.

APOIO

REALIZAÇÃO

Success! Message received.

bottom of page