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Reflexões em um trem urbano

A chuva pingava na janela vítrea do vagão iluminado. Antônio Medeiros observava atentamente os pingos d'água escorrerem pelo plano vertical, algo que o atraia muitíssimo quando as trilhas líquidas brilhavam com a reflexão da luz do sol, porém, infelizmente, o tempo estava nublado. Contudo, era interessante acompanhar a visão das gotas caírem devagarzinho, mesmo que fossem muitas; elas encharcavam o vidro, dificultando a visão externa, juntamente com o embaçado causado pela maior temperatura interna.

Este era mais um dos tantos vagões de luxo com dois corredores de assentos estreitos, mas com acomodações generosamente confortáveis, pois ninguém precisava ficar de pé esperando pela chegada de sua estação. Havia espaço abundante para se transitar entre os assentos de fila única, enquanto as televisões entretinham os passageiros. Finalmente, o Estado do Rio de Janeiro havia implantado um meio público de transporte pensado inteiramente para o usuário, em vez do lucro obtido com a função. No entanto, este modal não era para todos. Não para todos, mas apenas para os possuidores do High Society Card (HSC), ou mais conhecido como: Cartão da Sociedade Desigual. Um cartão que provava, através da Declaração do Imposto de Renda, quem possuía um valor mínimo de capital. Apenas era preciso comprar o cartão (HSC) e passar o código de barras que liberaria a condição de compra de um bilhete de transporte. Algo limitador, desigual e maldosamente planejado.

Entretanto, pulemos esta parte da história...

O ano é 2022. Cidade do Rio de Janeiro melhorada pelos empreendimentos das grandes multinacionais e consórcios urbanos de revitalização. Tudo havia modificado desde a última grande construção de aprimoramento à infraestrutura carioca: o projeto Porto Maravilha. Novas avenidas suburbanas surgiram e túneis de longitude incrível levam o centro da cidade até as proximidades norte, leste e oeste; museus com obras culturais incomparáveis, redes de comunicação subterrânea para a valorização da arquitetura portuária e melhor banda larga... Além dos VLTs (Veículos Leves Sobre Trilhos). Estes foram a maior revolução no Rio de Janeiro, com motivos relacionados ao transporte como à sociedade.

Relatos indicam que o início dessa reformulação, implícita para a classe alta, aconteceu devido à reeleição do prefeito Eduardo Paes, em 2012. Após sua entrada, novamente, à prefeitura do Rio de Janeiro, Eduardo Paes continuou seus planos para a reintegração da sociedade aos portos do estado, criando diversos meios que possam obrigar a sociedade global a visitar constantemente a locação. O Museu do Amanhã e o Museu de Arte do Rio (MAR) trouxeram cultura e entretenimento a uma área que apenas era conhecida por conter histórias de revolta, como a popular Revolta da Vacina e a Revolta da Chibata. Estruturas especiais de memórias aos negros também foram construídas na região portuária: O Cais do Valongo e da Imperatriz, o Cemitério dos Pretos Novos, o Largo do Depósito, o Jardim do Valongo, a Pedra do Sal, a antiga escola da Freguesia de Santa Rita, o Centro Cultural José Bonifácio. Todos feitos para a disseminação da ideia de integração racial à cultura brasileira. Esse foi um ponto forte para o reconhecimento da sociedade brasileira como um todo.

Contudo, o governo de Eduardo Paes modificou muito a região do porto, apesar de nem todos acreditarem que foi para melhor. Na verdade, grande maioria era contra essa “Revolução Benéfica” de que tanto falavam. Antônio Medeiros era um dos que não admitia que o projeto de revitalização fosse tão aclamado pelo seu povo, apesar de não contestar a opinião pública; algo comum de todo cidadão omisso. Por isso, apesar de ser contra, ele continuava a utilizar o transporte público. Era rápido, confortável e minimizava problemas.

Antônio estava sentado próximo à janela, enquanto a chuva salpicava as janelas de seu vagão. Diversas pessoas também estavam sentadas no local; algumas delas liam jornais, outras comiam aperitivos ou papeavam. Tudo estava calmo, até o comercial de TV, passado em uma televisão de LCD interna ao vagão, interferir no silêncio da viagem: “VLT, D+ P/ VC!”, um anúncio publicitário que mesclava as linguagens dos internautas com a sigla do trem. Antônio visualizou aquilo com desprezo, pensando no dinheiro, tempo, pessoal, linguagem... Tudo que foi gasto para fazer um comercial coloquial e hipócrita. Sua irritabilidade havia sido controlada há pouco tempo, quando a chuva começara a cair. Entretanto, aquele comercial estava perturbando suas emoções, aquecendo sua mente, fazendo todo o sentimento de omissão se esvair. Em algum momento isso acontece com todo ser revoltado pelo seu próprio comodismo...

- Deus! O Governo realmente acha que somos imbecis. – Diz Antônio, após ver a logomarca do governo do Estado do Rio de Janeiro.

- Acha não, tem certeza. – Disse o companheiro de fila, sentado no outro lado do vagão, à sua esquerda. Antônio percebera que recebeu atenção por sua mensagem e que um compartilhamento de informações não seria ruim.

-Depois que este trem foi criado, parece que todos esqueceram o quanto ainda o Rio está abandonado, não acha? – Disse Antônio.

-Sim, sim. Mas acredito que mais do que isto, o Rio ainda é dominado pelos poucos que possuem bolsos cheios e deixado dominar pelos muitos que nem mesmo entendem o valor da democracia. É, companheiro... O negócio é o seguinte: ou vivemos sem nos importar com estes problemas políticos ou acabamos enlouquecendo com tanta injustiça e imoralidade.

-Olha... Infelizmente isto é real. Nós não sabemos como resolver este problema. Se tentarmos modificar a fundo, somos caçados pelos capatazes dos políticos. Se lutarmos formalmente, acabamos caindo no mesmo ponto: tornar-nos um político e tentar para mudar algo; e isto possui consequências como: ser ameaçado, caso faça algo fora do padrão; furtado, violentado... - o homem ri ironicamente após ouvir o que Antônio afirma com clareza. Uma risada que parece saber o verdadeiro sentido das consequências citadas.

-Prazer, meu nome é Juliano. É bom desabafar um pouco sobre estas maldades sociais que nos afetam tanto, não acha?

-Sim. Aliás, prazer, meu nome é Antônio. – ambos se cumprimentam apertando suas mãos e olhando nos olhos. O silêncio permanece firme após alguns segundos do fim da apresentação. No entanto, Antônio decide dar continuidade ao seu pensamento:

-Mas se formos pensar pelo lado bom, ainda podemos achar grandes soluções de problemas passados. O mais interessante, Juliano, caso você não tenha reparado, é a disposição de todas as linhas férreas. Elas possuem 30 km de comprimento e são no total 42 estações. Cada vagão pode comportar 450 passageiros e o tempo de espera entre a partida de cada trem varia entre 5 e 15 minutos. Isto é muito melhor do que os 20, ou 30 minutos das linhas de trem. Foi a partir do conceito de velocidade, que a criação destas linhas teve como um de seus objetivos, unir todos os possíveis meios de transporte ao porto do Rio: estações de metrô e trens, barcas, BRT, redes de ônibus convencionais, vans e aeroporto. Isto foi muito bom para quem deseja se locomover rapidamente da região portuária até os demais locais do município. Para estrangeiros, isso significa mais segurança, velocidade e estabilidade; e de certa forma, para nós também.

Juliano meneia sua cabeça, demonstrando concordar, apesar de tudo, com Antônio. Ele decide também por sua opinião na conversa:

-É... Esse é um ponto positivo. Lembro-me quando a Avenida Presidente Vargas estava mais uma vez engarrafada; eu peguei um VLT para a Central, em vez de usar um ônibus ou carro. Cheguei em 10 minutos! Outro ponto seria a minimização do trafego em algumas ruas. Os VLTs não resolveram os problemas de engarrafamento, mas diminuíram bastante a quantidade de carros. Cinelândia, Carioca, Uruguaiana, Central; são pontos onde esse fato ocorre. Tudo graças aos Veículos Leves sobre Trilhos.

-Então nem tudo que o governo cria é tão ruim assim, não acham, amigos? – Um terceiro homem, sentado na linha de bancos posterior, decide argumentar também.

Antônio e Juliano olham para o homem. Um senhor de idade, com bigode branco, cabelos grisalhos e um óculos de grau.

-A propósito, meu nome é Romeu, filhos. Sabem, vejo muito jovens, ou até adultos como vocês, reclamarem muito do governo e de tudo mais. Eu sei que esta democracia descontrolada, desrespeito político e as demais injustiças são fatores ruins para a vida social. Porém, amigo, na minha época aconteceu a Ditadura Militar e ainda nem tínhamos tanta facilidade e velocidade como hoje. Eu me lembro que não havia metrô, apenas em 66 que surgiram os primeiros, e mesmo assim eram para pontos específicos. Os trens eram interestaduais. Sobravam os ônibus, que eram superlotados, as carroças ou lambretas! No final, nem todos podiam utilizar destes transportes, pois eram caríssimos. Nossa... Eu fico pensando nisso. Vocês não sabem como são sortudos de poderem ter toda esta facilidade. São tantas estações e linhas que eu fico até perdido, mas pelo menos eu posso ir de um ponto a outro com muita rapidez.

-Bem, eu não consigo imaginar como deveria ser. Eu suponho que as dificuldades eram grandes, nós conseguimos dar a volta, melhoramos bastante, mas isso não prova que estamos melhores do que antigamente. O problema é a politicagem que o estado promove, utilizando a mídia para se aproveitar dos benefícios que são para o povo. Eu mesmo não acreditei quando descobri que o uso dos VLTs era restrito para pessoas de classe alta. Como isto pode ser um projeto de integração populacional ao porto, se nem ao menos o povo pode usá-lo? – disse Juliano.

-Exatamente porque não é o povo de nosso estado, e sim o povo de fora. Internacional. No Rio de Janeiro, a maioria dos projetos é pensada para a fama mundial. Muitos se aproveitam da fama do estado para criar a sua própria... – Respondeu Romeu.

Os três homens permaneceram calados após o fim da fala de Romeu. Todos sabiam que aquele tipo de conversa não levava a lugar algum. Era preciso ação e emoção para modificar algo, quando o assunto era política. Antônio, inspirado pela sua falta de ação e pela vontade que querer fazer algo, decidira falar. Ele sempre se perguntara o porquê de relevarmos tanto a política; Antônio também queria fazer algo... Sempre quisera.

-Eu acredito que nós todos sofremos com as feridas que a antiga política deixou em nossos peitos. Acredito também que o medo de algo parecido com o passado nos fez afastar do que hoje chamamos de liberdade, pois não vivemos em liberdade, e os políticos sujos sabem disso. A população é presa em seu âmago pelo medo do passado, mas também pelo temor de um futuro pior. “Não adianta lutar, pois todos são corruptos”, essa é uma frase que ouvimos muito, mas por que será? Por que será que julgamos tão maus os que tentam nos representar? Eu acredito que seja por medo de querer descobrir que o erro está em nossas mãos, e não nas deles. Nós somos os culpados no final das contas, pois nós deixamos que os militares tomassem o poder, mas nós os tiramos de lá. E agora deixamos novos ditadores reinarem sobre nossa nação. Tudo porque o cansaço da batalha ainda nos perdura...

-Juliano e Romeu escutavam atenciosamente Antônio, e não apenas eles, mas todo o vagão. Quando Antônio começara a falar, sua voz emitira sons cada vez mais altos, obrigando a todos o ouvirem. De alguma forma aquele vagão fora encharcado com a água que limpava a escuridão da ignorância, fazendo com que todos dessem ouvidos aos argumentos mais que válidos do misterioso homem.

-Mas eu pergunto! Até quando meus amigos, até quando vamos deixar que eles nos submetam a tais injustiças. Eu, ele e ele; todos aqui possuímos o HSC. No entanto, por que o temos em mãos? Por que apenas nós podemos usufruir de algo construído na terra de todos?

-Diga-me, você, de chapéu florido, de que país você veio?

-China.

-E você de sobretudo?

-Inglaterra.

-Quantos mais aqui são de outros países? – Quase todos os usuários do modal levantaram suas mãos.

-Vejam, amigos! Nosso próprio povo não pode utilizar, mas os estrangeiros podem! Nada contra vocês, meus amigos, mas isSo não parece uma grande injustiça?

-SIM! SIM! SIM!

-Então, meus caros! Sabem qual é a resposta para isto? Sabem como podemos realmente tentar mudar a política deste país? Eu vou vos dizer: crescer, amadurecer, estudar, praticar a educação. Devemos ser cidadãos e irmãos, não apenas pessoas de um estado. Devemos nos unir, mas não precisamos sair em passeatas diversas. Podemos começar em nossas casas, prevenindo a briga entre pais, prevenindo o vício dos filhos, prevenindo o não-amor. Devemos amar, meus amigos!

-Conversar também! Como faziam meus pais. Reuníamos-nos à frente da lareira e conversávamos durante a noite sobre como fora nosso dia. Algo que sinto falta... – Disse Romeu.

-Sim. Também sinto falta dos hábitos sociais. Sinto falta das conversas e das verdadeiras amizades, e não os 10000 amigos do Facebook, que não representam nada além de falsidade ideológica e social. Somos muito mais do que LOGIN/SENHA, usuários do HSC, ou aculturados e miscigenação. Somos um povo, somos uma nação.

Rodrigo Rocha

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